Despachos da Muralha, episódio 1: Pasto e soja

– Querendo dizer – disse Maiara, apontando para o mapa – que esses reinos são todos uma fachada. Estão conjuminados.

– Estão em guerra, você quer dizer – disse o italiano. Tocou por um instante a ilha no centro do mapa, depois fez com que o dedo des­li­zasse do sul para o noroeste. – A Resi­dên­cia em Vazília jurou proteger os índios e outros guardiões da Muralha, mas é há trinta anos que o Império Gaúcho está invadindo e dila­pi­dando a Muralha com a coni­vên­cia da União.

– Que ninguém faz nada só comprova o que eu estou dizendo – disse Maiara, que estava nua para disfarçar o fato de que estava usando a ocasião para despejar uma enorme quan­ti­dade de infor­ma­ção. – Não se pro­nun­ciam nem os Estados de que se poderia esperar algum apoio, tipo o Serestão no nordeste ou o prin­ci­pado da Guanabara.

– Você acredita mesmo – o italiano passou o dedo pelas costas da mulher – que o Sacro­con­do­mí­nio está em con­ju­mi­nân­cia com o Império Gaúcho?

– Disso não tenho dúvida – ela disse. – Não entendo os detalhes mas tem de ser. Esta semana o cardeal paulista Voto­ran­tim e o imperador gaúcho se encon­tra­ram com a Resi­dên­cia em Vazília. Ofi­ci­al­mente foi um jogo amistoso, mas ninguém ignora que dis­cu­ti­ram modos de acelerar a tomada da Muralha.

Estavam os dois nus num terraço da favela do Vidigal, espar­ra­ma­dos em esteiras, lam­bu­za­dos de protetor e bebendo cai­pi­ri­nha. O italiano não tinha qualquer intenção de encurtar aquela conversa, por isso não é sempre que fazia questão de entender. Ele pegou e folheou o dossiê que ela tinha lhe passado.

– O cardeal Voto­ran­tim… Emílio Voto­ran­tim, certo? Da Federação das Indús­trias da Sacra Igreja Neoliberal?

– Ele mesmo.

– Mas não faz sentido – ele largou o dossiê e sem se levantar virou muito deli­be­ra­da­mente o corpo de modo a ficar de frente. O italiano era careca e atar­ra­cado, mas tinha também o seu público. – Vamos pensar no Império Gaúcho. Que armas eles estão usando?

– Os gaúchos só usam armas bio­ló­gi­cas – disse Maiara – Estão invadindo a Muralha com as mesmas táticas que usaram para tomar as porções do Mar Cerrado que cobriam, digamos, o Paraná. Shock and awe: pasto e soja.

– Se entendi direito os fanáticos neo­li­be­rais napal­mi­za­ram com pasto e soja todo o Mare Imbrium. Não existe mais.

– Certo – Ela indicou o ponto no o mapa. – O Mare Imbrium ou Mar das Chuvas aparece em alguns mapas que te mandei como Mar Cerrado. O bom­bar­deio de pasto e soja eliminou a vegetação nativa, que era espe­ci­a­li­zada em reter a água da chuva e abastecer os aquíferos em que mamam os rios.

– E com que consequências?

– A partir do centro o Mar das Chuvas ali­men­tava os rios do sul, do nordeste e de uma parte do norte. É simples: os rios e reser­va­tó­rios estão secando.

– É isso que não fecha – o italiano pôs-se de pé e passou a fazer o perímetro do terraço, como se caminhar o ajudasse a olhar de todos os ângulos o problema. – O cardeal Voto­ran­tim é um sujeito esperto. Ele não tem como não saber que a seca que atingiu o Sacro­con­do­mí­nio de São Paulo é só o começo das dores. Tendo em vista o que aconteceu com o Mare Imbrium, ele não teria motivo para ajudar os gaúchos a derrubar a Muralha… quem sabe com quais con­sequên­cias. Você é índia, jurou guardar a Muralha, sabe do que estou falando.

Ela olhou muito séria para dar a entender que sabia.

– Você teria razão, meu caro Massimo, se o cardeal tivesse de responder a alguém. A Sacra Igreja Neo­li­be­ral promove for­te­mente a separação entre Igreja e Estado, querendo dizer que os neo­li­be­rais conferem a si mesmos imunidade de qualquer res­pon­sa­bi­li­dade pública.

– Gaúchos e paulistas podem eliminar o Mar Cerrado e não têm de responder legal­mente por isso?

– Eles só estão pedindo que você respeite a sua fé – ela sentou-se e esvaziou o último copo de cai­pi­ri­nha. – E no caso do Mar das Chuvas tinham uma enorme vantagem estra­té­gica: o mar era sub­ter­râ­neo, invisível. O povo vê que a planura continua lá e acha que não se perdeu nada. Mesmo com a seca e a míngua dos rios, só vão fazer a conexão quando o cardeal já não estiver mais no poder. Mais uma das vantagens de não ter de responder a ninguém, muito menos ao futuro.

O italiano agachou-se ao lado da mulher e começou a espalhar sobre a sua esteira as foto­gra­fias que acom­pa­nha­vam a seção “A Muralha” do dossiê. As fotos alter­na­vam paraíso e inferno: matas exu­be­ran­tes e impe­ne­trá­veis ou espla­na­das cal­ci­na­das que evocavam Hiroshima. O homem não precisava de ajuda para entender quais eram as imagens mais recentes.

– Mas a Muralha é diferente, é muito visível – ele disse. – Veja essas fotos. Tem os vídeos no youtube. O des­flo­res­ta­mento e a invasão das terras indígenas eles não vão ter como esconder.

– Na capital eles tem um ditado – ela acariciou a barba dele. – “A sudoeste de Vazília, a civi­li­za­ção; a noroeste de Vazília, não há contravenção.”

– Contra a Muralha então todo jogo é limpo. Vale tudo.

– Obvi­a­mente foi para isso que Vazília foi cons­truída: não para puxar a civi­li­za­ção para o centro, mas para demarcar os limites da con­tra­ven­ção. Da boca para fora a Resi­dên­cia apoia os guardiões, mas ao mesmo tempo dá carta branca a gaúchos man­co­mu­na­dos com paulistanos.

– Querendo dizer que vocês índios vão ter de repelir sozinhos o ataque à Muralha.

– Não vamos resistir por muito tempo, Massimo. A Resi­dên­cia está cons­pi­rando esta semana de modo a acelerar a liberação de licenças ambientais.

– Que são licenças para destruir o ambiente, ao contrário do que se poderia concluir do nome. Ah, voi vasiliani.

– O governo prefere dizer, como os gaúchos urra­lis­tas, que está liberando o meio ambiente para ati­vi­da­des produtivas.

O italiano deixou-se sentar, derrotado, e ficou pro­cu­rando entre os copos cubos de gelo que pudesse mastigar. Em seguida fizeram amor por duas ou três horas sobre as esteiras, debaixo do sol da Guanabara e na altura do olhar dos vizinhos.

– Então é isso – Massimo disse depois, enquanto Maiara aper­fei­ço­ava os círculos dos pelos do peito dele, – você só queria me usar.

– Eu precisava de alguém de fora – ela confessou, sem paixão e sem culpa – de modo a reca­pi­tu­lar os fatos em benefício de alguém que estivesse se ligando na história neste momento. É só um recurso narrativo, nada pessoal.

– Maddona, é hora de mudar isso – o italiano pôs-se de pé ime­di­a­ta­mente e, muito a con­tra­gosto, começou a se vestir. – Esta história já tem coad­ju­van­tes demais. Você sabe o que disse Mazzini? Dio è Dio, e l’umanità è il suo Profeta. Se Garibaldi lutou as lutas do Brasil eu também posso. Eu também devo.

– Não sei se é um boa com­pa­ra­ção – a índia começou a recolher as esteiras e os copos, – tendo em vista que Garibaldi lutou a favor dos gaúchos.

O homem parou de se vestir por um momento para enfatizar o seu protesto:

– Naquela época os gaúchos lutavam contra o império. Agora eles são o império.

– E qual é o seu plano? – perguntou a índia. O italiano já estava calçando os sapatos e Maiara ainda não tinha começado a se vestir. Não tinha qualquer incli­na­ção de deixar-se resgatar pelo Grande Salvador Branco.

– Vocês são índios, vocês são con­tra­cul­tura, vocês andam nus – ele disse, tocando-lhe o braço como que para deixar-lhe uma divisa. – É impos­sí­vel que não tenham aliados: está na hora de forjar alianças.

– Temos mais do que isso – ela achou que era hora de revelar, e baixou a voz. – A carai­ba­gem tem herdeiros legítimos, Massimo. E dois deles estão aqui mesmo no Rio de Janeiro.

– Ma che cazzo stai –

Nessa hora um tiro atra­ves­sou o italiano.

– De novo – disse Maiara. Abaixando-se para desviar-se dos outros disparos, a índia arrastou o corpo inerte do homem para dentro da casa, e em seguida tomou-lhe o pulso para deter­mi­nar se ele era coad­ju­vante ou pro­ta­go­nista. Passados alguns segundos, Maiara não sabia dizer se estava aliviada ou não.

– Pro­ta­go­nista – ela disse.

continua…

fonte: http://www.baciadasalmas.com/pasto-e-soja/