Nesta busca, descobrimos que o estado do Rio Grande do Norte não possui comunidades indígenas reconhecidas. Isto porque, nos revelou esse misturar-se com nossas origens ancestrais, os indíos e índias da região sofreram com mais virulidade a pressão da miscigenação cultural e limpeza étnica, assim como o saqueio de terras, aldeamento e perseguição religiosa e linguística, e isso, desde os primórdios da colonização brasileira. Região central de uma extensa área indígena rebelde, estratégica geograficamente, que servia de refúgio para muitas das tribos que iam contra o sistema mercantilista – Cariris, Janduís, levantes indígenas importantes no período colonial, como a Guerra dos Bárbaros ou confederação dos Cariris ? tornaram-se alvo de grande repressão militar por parte da ordem vigente: constantes levantes e alianças entre colonizadores e índios e sujas conspirações entre as diferentes tribos, que levaram à quase total dizimação dxs índígenas da região. Um episódio marcante dessa história apagada foi o Massacre de Cunhaú, em 1654, onde por incitação de holandeses, índios do sertão mataram centenas de parentes ajoelhados em plena missa, portuguesa é claro.
Estabelecidos os engenhos de cana, modernizados em grandes usinas de ?bio? combustíveis, a dominação política consolidou-se com a chegada da base aérea estadunidense na cidade de Parnamirim, próximo a Natal, no ano de 1941 sob um acordo de ?defesa mútua? imposto pelos Estados Unidos junto ao rompimento de relações diplomáticas com a Alemanha, Itália e Japão (janeiro de 1942) e, por fim, a declaração de guerra aos países do Eixo. Identificado nos mapas estratégicos estadunidenses como Trampoline of Victory, Parnamirim Field foi a base de um triângulo que apontava para o ?teatro de operações? (o norte da África e o sul da Europa), agravando ainda mais a exploração da natureza e da humanidade local. Literalmente, prostituiram as descendentes potiguare/as.
Após mais de 100 anos de silêncio oficial, nos quais estas populações foram dadas como extintas, desde junho de 2005, diferentes grupos étnicos reivindicam publicamente sua identidade indígena em território potiguar: Eleotério do Catu de Canguaretama, Mendonça do Amarelão de João Câmara; Caboclos de Açu; Comunidade de Banguê e Trapiá, também em Açu; Comunidade de Sagi, cujos antecessores Potiguara vieram da Baía da Traição na Paraíba. Apesar do etnocídio, ou da tática do desaparecimento para não serem mortxs, configuram culturas altamente resistentes e em processo de constante recriação.
O nordeste abriga hoje 24% dos povos indígenas brasileiros. A comunidade do Vale do Catu, em Canguaretama, onde habitam cerca de 110 famílias, vêm nestes últimos 4 anos desenvolvendo atividades de fortalecimento de sua identidade indígena como aulas de tupi, peças sobre histórias da mata e espiritualidade (jurema), danças (toré) e demais articulações com grupos de antropólogos da UFRN, parentes potiguaras próximos (da Baía da Traição na Paraíba) assim como a sociedade como um todo. Segundo Luis, professor do local, avançam a discussão para além da identidade, reinvidicam igualmente territórios. “Índio não é sem terra, índio tem terra” esbraveja Vando, um dos moradores da comunidade.
Superando a falta de água encanada – que chegou há apenas 3 anos – o esgoto a céu aberto e um rio perfeitamente navegável até o mar totalmente destruído por produtos tóxicos oriundos de duas das mais poderosas usinas de cana-de-açúcar do estado, uma delas a multinacional francesa Louis Dreyfus Commodities Bioenergia, que abrange além de sua central de atividades o arrendamento de terras de pelo menos 3 municípios do estado, pertencentes ao antigo proprietário Grupo Tavares de Melo. Campos inteiros contaminados pela peste branca: a cobiça do vil metal hoje transmutada em quilômetros de cana, sorgo e girassóis para combustíveis. Ao lado e em todo o entorno, centenas de hectares de desertos verdes desenham os horizontes planetários que revelam a desumanização capitalista. Os dentes podres dos comedores de açúcar europeu, os carros dos estadunidences e japoneses, o combustível de toda a engrenagem perversa.
Uma Flor da Palavra desabrocha na comunidade do Catu através de reflexões sobre a cultura, história e fazeres indígenas latino americanos, em oficinas, vivências, artes e técnicas livres. A proposta é a invenção de laços de comunicação e solidariedade entre a comunidade e o resto do planeta. Um desses laços solidários é com o Acampamento do MST José Martí, há 4 anos na beira da BR-101, no mesmo município, Canguaretama, também sendo sufocados pelo agronegócio predatório.
Catu Resiste!
Flor da Palavra na comunidade do Vale do catu, Canguaretama, Rio grande do Norte, 27 e 28 de agosto de 2009, Escola Municipal João Lino da Silva, a partir das 9 da manhã
um mergulho profundo na luta indígena potiguar. nadar na própria história, à procura de uma realidade mais condizente com o que sentimos e vemos. não estamos cegxs, sentimos o cheiro tóxico, as fumaças. bebemos água contaminada. tememos pela superficialidade ubícua que impõe às nossas filhas. as condições sub-humanas que nossos homens têm que se submeter para alimentar a sede dos automóveis daqueles que nos oprimem e nos alienam.
historicamente discriminados pelo estado, mortxs em lutas cruentas, politicamente engolidxs pelo capitalismo global, literalmente exterminadxs de suas culturas, há poucos anos diferentes comunidades do rio grande do norte vêm procurando e sendo procuradas por agentes do estado em busca de suas raízes.
o que para uns/umas significa redescobrir a história de antepassados, ter orgulho de ser o fruto vivo das sequelas de 509 anos de exploração, para outrxs pode ser uma chance de obter mais fundos para suas pesquisas, mais mão-de-obra para suas tecnocracias, ou simplemente mais um nome no relatório, mais um cargo, mais uma secretaria.
aqui neste relato questionamos antes de tudo o tipo de realidade em que estas comunidades estão sendo inseridas, replicando quais marcos legais? quais processos de legitimação de políticas públicas planejadas para sua contínua tutelagem? uma vez cultural agora econômica, perpetuamente territorial. o Estatuto dos Povos Indígenas por exemplo, está parado há 16 anos por falta de vontade política do governo federal, mas o que não faltam são propostas de desregulamentação de terras e manejo “sustentável” de recursos hídricos e de minérios em territórios indígenas. o atual estatuto é de 1973, defasado em relação à Constituição Federal de 1988 e à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). neste estatuto desumano (de 1973 http://www.funai.gov.br/quem/legislacao/estatuto_indio.html
estatuto de 2009 http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/EstatutodosPovosIndigen…) estão alguns artigos como o II da Assistência ou Tutela que dispõe sobre a nulidade de atos praticados sem a intermediação do estado ou o capítulo I do título II Das Terras dos Índios onde se legaliza a intervenção do estado em áreas indígenas para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional, para exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança ou a simples repressão física de qualquer tipo de desavença ou descontentamento das comunidades tuteladas.
mas vamos começar do início…
há dois meses atrás chegamos na comunidade do vale do catu, no intuito de contribuir com a luta pelo reconhecimento indígena e pela retomada de seus territórios. durante esse período convivemos e conhecemos inúmeras pessoas da comunidade, onde aconteceram conversas, práticas de plantio, troca de sementes, denúncias da comunidade sobre pesquisadores, antropólogos e estudantes que chegam até elxs no intuito de escreverem suas teses de mestrado, doutorado e que nada contribuem com as suas realidades, denúncias sobre a qualidade da água e do solo, que sofrem constantemente despejos de vinhoto, agrotóxicos e fertilizantes oriundos das plantações de cana-de-açúcar da megacorporação, hoje francesa, Louis Dreyfuss Commodities Bioenergy. percebemos durante este período a desinformação das pessoas quanto aos trâmites pelo reconhecimento indígena, que encontra-se sendo discutido por lideranças elegidas pelo estado como presidentes de associações e diretorias de escolas, bem como a segregação da própria comunidade com a criação de duas associações: uma representada pelo município de canguaretama e outra pelo município de goianinha – administrações que atualmente passam por um processo de disputa pelos “impostos” pagos pela megacorporação canavieira.
dia 27 de agosto
lua minguante, ótimo para o plantio de raízes, tudo que dá para baixo da terra.
começamos o dia com as crianças da escola municipal joão lino da silva mostrando uma série de fotos que tratam da realidade do movimento zapatista. seguiu uma pequena discussão sobre os “gorros pretos” e a discriminação constante sofrida pelxs indígenas mexicanos, sua luta por terra e liberdade, e que na busca por superá-las, protegem sua anonimidade. conversas com professorxs da escola sobre ervas medicinais, conhecimentos tradicionais versus corporações da industria farmacêutica. com a chegada de luiz e vando iniciou-se o tema da luta indígena no rio grande do norte, que tem se dado em ações de diálogo com o estado – como a ocupação da assembléia legislativa em 2005, quando se declararam publicamente indígenas – e ações locais como o ensino da língua tupi e do toré, junto à mitologias ancestrais como a caboclinha da jurema e o índio bravo Canindé. falamos também sobre como o processo de reconhecimento não acontece de forma homogênea na comunidade e de como problemas graves como a contaminação do solo, da água, a degradação do ecossistema como um todo, fruto da ocupação ilegal de suas terras, e que curiosamente, não vêm sendo foco nas discussões. segundo a bisavó de vando, que nasceu no catu, possuem pelo menos 300 anos de história nesta terra. seguiu-se por fim uma apresentação de toré organizada pelo professor luiz, uma pequena parcela do trabalho de resgate cultural realizado por ele, envolvendo adolescentes e crianças de todas as idades, e que segundo depoimento pessoal do mesmo, aceitou-se índio ao ser discriminado na igreja evangélica.
dia 28 de agosto
o mais emblemático das lutas contemporâneas pelas quais essas comunidades passam.
totalmente mergulhadas na lógica “democrática” do “estado de direitos”, já passaram pelo processo de domesticação cultural e agora sofrem um re-aparelhamento do estado através de uma série de estratégias como a criação de cargos para lideranças – “12 escolhidos” como delegados numa comunidade de 110 famílias – enfraquecendo ainda mais o seu processo de reconhecimento identitário, e que se arrasta há passos lentos.
presenciamos a visita de inúmerxs agentes do estado, a nutricionista responsável pela merenda escolar – alimento que percorre quilômetros, e que poderia ser produzido localmente, pois a comunidade é reconhecida por sua agricultura, inclusive orgânica – merenda esta que não contém nenhum tipo de frutas ou saladas. duas representantes, Lígia e Jussara, da emater – orgão do estado cuja missão é “contribuir para a promoção do agronegócio” ( http://www.emater.rn.gov.br/missao.asp), e que realizaram cursos de culinária de bolo de batata e de mandioca sob influência do “novo” mercado de turismo exótico e que ao serem questionadas sobre uma possível análise físico-química da água e solo afirmaram que a mesma já tinha sido feita, mas não de forma adequada, deixando claro que o interesse não é a favor da comunidade e sim da especulação, além de não dialogarem com a comunidade para saber de suas reais necessidades, desejos e demandas. as quais descobrimos aos montes, em bem pouco tempo.
a chegada da antropóloga da ufrn, jussara galhardo, integrante do grupo paraupaba e da representante da secretaria de educação gorete, com 3 horas de atraso, no carro do governo do estado do rio grande do norte, para uma reunião preparatória para a primeira assembléia indígena do estado foi inesquecível. não podemos deixar de mencionar a lembrança que tivemos da boneca barbie, epítome da erotização e do biopoder que a sociedade capitalista impõe às mulheres, e que indicava o discurso por vir: a assembléia gerida por seu grupo Paraupaba, ligado à UFRN e financiada pela FUNAI já tinham garantido e estavam em processo de licitação o transporte, hotel e alimentação dos 12 delegados de cada comunidade indígena. em nenhum momento foi citado os custos de tal encontro, ou discutido a possibilidade deste ser feito em alguma das próprias comunidades indígenas. o que poderia contribuir para sua autonomia material, e uma participação realmente legítima da comunidade – já que lá só haviam 8 pessoas. além da própria gestão do encontro, que não valorizou pessoas, vozes, idéias oriundas da própria comunidade, a participação do povoado do catu foi simplesmente para legitimar uma pauta pré-estabelecida de assuntos pré-definidos: identidade, território, saúde e educação. outra entidade envolvida na gestão do projeto é a Apoinme que uma breve pesquisa na internet revelou ser financiada por diversos orgãos de caridade estadunidenses, como a Heifer, que está apropriando da proposta da agroecologia para “transferir a tecnologia” de confinamento e criação de animais para abate e leite – encontramos inclusive denuncias de que enviavam animais de produção de leite para locais onde as pessoas tinham um altíssimo nível de sensibilidade à lactose. vale lembrar que a o aprisionamento e confinamento de animais nunca foi uma prática indígena.
com relação a identidade, o que realmente vem acontecendo é o remanescente indígena ter que comprovar através de testes sanguíneos sua descendência, tendo suas amostras de sangue apropriadas pelas corporações de biotecnologia e indústria farmacêutica, aproveitando-se aí de sua variabilidade genética, além de frear o processo de emancipação política e territorial das comunidades indígenas ao priorizar uma “união genética” sem considerar as enfermidades acumuladas durante todo o período de destruição de suas culturas. em momento algum foi negado a necessidade de reconhecimento identitário, o que de fato foi questionado é que o reconhecimento indígena já ocorreu na comunidade do catu assim como muitas outros povoados, pois eles mesmos se reconheceram. então porque o estado não aceita isso? por que criar assembléias, secretarias, obstáculos cada vez maiores com cada vez menos pessoas para ao fim nem sequer ouvirem as suas necessidades, como testemunhamos? Ignorando os diversos protestos indígenas contra a FUNAI e FUNASA.
sem questionar o que de fato vem acontecendo em relação à educação. quem mais senão a própria UFRN e FUNAI poderiam levar adiante a implementação da lei que institui o ensino da cultura afro e indígena nas escolas públicas brasileiras com a produção de material didático, áudiovisual, reconstrução coletiva de histórias propositalmente esquecidas?
//uma continuação da dominação histórica que os povos ancestrais de nosso continente latino americano sofrem até hoje.//
quando questionadas sobre a efetividade de tal assembléia, e a luta parcial que o reconhecimento indígena acaba por promover, destacado das realidades políticas, econômicas e culturais em que estas sociedades estão inseridas nos dias de hoje, as representantes dos representados propuseram a nossa exclusão da reunião, o que foi negado pela maioria dos participantes. seguiram liderando-a (de 2 horas jussara galhardo falou pelo menos 1) propondo que todxs concordassem com a exposição feita por ela – conquanto que nós (rede flor da palavra) não falássemos. uma prática fascista que não contempla o consenso. nem todxs da comunidade foram ouvidxs, e foi com impaciência que as “loiras” ouviram uma senhora de idade que chegou atrasada e que trouxe uma questão muito importante e que sequer foi analisada e muito menos levada em consideração: de como o estilo de vida das mulheres com o cuidado da casa e dos filhos está muito distante do modelo eleito pelo estado para a dominação, opa.. representação – delegadxs enfurnados em salas com ar-condicionado e hotéis com frigobar.
através da eleição de representantes, criação de associações, uma futura secretaria já sendo discutida, quando sabemos dos inúmeros casos de corrupção, biopirataria, suicídio e morte entre indígenas ( http://diplo.uol.com.br/2008-02,a2168), orgãos “indigenistas” que nunca foram geridos por índixs, na contramão de uma construção realmente participativa, de diálogos e de cosmovisões, promovem um processo de “escolhas” quando na verdade prevalecem os mesmos mecanismos de sempre: estado contra a sociedade. pessoas alienadas. não há, portanto, a valorização de vozes e idéias da comunidade do vale do catu.
outra situação curiosa ocorrida durante o encontro e que para uma melhor análise vale um recuo na história do RN para citarmos o mais conhecido herói indígena potiguar, felipe camarão, catequizado pela cultura jesuítica e que auxiliou no massacre de seus conterrâneos junto à coroa holandesa. ainda hoje aliciados pelo estado, como valda, diretora da escola e presidente da associação de moradores do catu de canguaretama que afirmou que podia sim representar toda a comunidade e que sua decisão valia por todxs, bem como wellington presidente da associação de moradores do catu de goianinha que disse que podia contar na mão o número de habitantes de sua região e que propôs um novo encontro, com mais legitimidade, mediante a mobilização de toda a comunidade. a sugestão do compa ruiter de sair para a comunidade naquele mesmo momento para uma consulta popular não foi levada em consideração.
avaliamos a flor do catu como um momento muito importante na história da comunidade. um momento em que a américa latina ebule na luta por terra, liberdade, dignidade. um momento emancipatório de reafirmação indígena, em que todos somos parte dessa luta, protagonistas de uma história corrompida e mascarada. somos vozes que se unem para resistir ao neocolonialismo, a forma mais perversa de dominação, que manipula as mentes, corpos e espíritos.
não aceitaremos a recolonização da américa latina e interviremos sim! pois somos parte disso, somos resistência! “aqui o povo manda e o governo obedece”. esse é o lema zapatisma que carregamos em nossos corações e ações. à nossa luta unem-se irmãos e irmãs, parentes das periferias de todas as cidades brasileiras, expulsos de seus territórios originários.
compartilhamos por fim das palavras de pessoas da comunidade que participaram da reunião:
“(…) a reunião foi proveitosa deu para perceber a intenção de muita gente que convive conosco. É assim que tem que ser as vezes devemos desafiar as pessoas para que elas mostrem seu verdadeiro carater. Precisamos do apoio de vocês para derrubar outras mascaras que trabalham em nome da política partidaria.”
“(…) é por causa desse tipo de coisa que não participo das reuniões, pois não consigo entender nada e nunca chegam a conclusão alguma.”
convocamos todxs a particarem da I Assembléia indígena do rio grande do norte, a ser realizada em outubro de 2009 em local e data a ser definido. levem seus passa-montanhas!
setembro de 2009
tatiana e ruiter
flor da palavra – rio grande do norte
http://flordapalavra.org
http://baobavoador.midiatatica.info